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Um roteiro para a análise arquitetônica de edificações

TEXTO: ALCILIA AFONSO

Este texto foi extraído de artigo de minha autoria publicado na íntegra na Revista Projetar, abaixo citado como fonte para utilização do mesmo:
AFONSO, Alcilia. “Notas sobre métodos para a pesquisa arquitetônica patrimonial”. Revista Projetar. Projeto e percepção do ambiente. Natal: Editora da UFRN. V.4 Nº3. pp 54-71. Dezembro de 2019.

INTRODUÇÃO
Trata-se de um um resumo sobre a metodologia que aplico como coordenadora do Grupal_ grupo de pesquisa Arquitetura e Lugar, cadastrado na UFCG e no CNPq.
Como foi dito anteriormente, o texto completo está publicado na Revista Projetar da UFRN, e quem desejar se aprofundar mais em cada tópico abordado, deve consultar o mesmo.
O objetivo dessa postagem é   divulgar uma proposta metodológica aos interessados na área de arquitetura,  possibilitando mais um caminho a ser seguido por jovens pesquisadores, para a elaboração de análises arquitetônicas, que não sejam apenas descritivas, mas também, críticas. Que procurem relacionar informações primordiais para a apreensão e compreensão do objeto arquitetônico, relacionando-o com seus mais distintos condicionantes.

Tais análises arquitetônicas podem estar presentes em estudos de casos para o desenvolvimento de projetos arquitetônicos, como também para estudos patrimoniais de edificações de distintos períodos estilísticos, que possam ou não, sofrer projetos de intervenção.

Arquitetura e Lugar. Fábrica da Hering Nordeste. Fonte: Alcilia Afonso.2020


A PROPOSTA METODOLÓGICA

No momento, estamos trabalhando para a análise do objeto arquitetônico com valor patrimonial com as sete dimensões- aqui listadas como as fundamentais- que interagem com a arquitetura:

1_ A DIMENSÃO NORMATIVA
2_ A DIMENSÃO HISTÓRICA
3_ A DIMENSÃO ESPACIAL
4_ A DIMENSÃO TECTÔNICA
5_ A DIMENSÃO FUNCIONAL
6_  A DIMENSÃO FORMAL
7_ A DIMENSÃO DA CONSERVAÇÃO

Sabe-se que poderiam entrar mais variantes, que criassem novas dimensões, mas até o momento limita-se a estas e tem funcionado bem, conforme será exposto.

Propõe-se ainda, como conclusão da análise arquitetônica, um olhar sobre a CONSERVAÇÃO DA OBRA, observando se a mesma está protegida legalmente e o seu estado de conservação- conforme será visto a seguir.



     Tabela síntese das dimensões arquitetônicas. Fonte: Diego Diniz.2020.


Vamos a seguir, tratar sobre o que deve ser analisado em cada uma destas dimensões:

1_ DIMENSÃO NORMATIVA

A dimensão normativa faz referência ao levantamento inicial que se deve ter sobre as leis, decretos, registros- que protegem este determinado bem.
A realização de uma pesquisa em órgãos públicos relacionados à preservação cultural em nível municipal, estadual e federal, é fundamental.

Questões como:
1_ o objeto é inventariado? Registrado? Tombado?
2_ Faz parte de algum sítio histórico?

Procurar observar se este determinando bem está devidamente inventariado, registrado, tombado, inserido em alguma área de proteção ambiental torna-se um dos primeiros passos para a análise do bem arquitetônico, seja para uma análise da obra, seja para um projeto de intervenção no mesmo. 

2_ DIMENSÃO HISTÓRICA

A dimensão histórica está relacionada ao fator tempo, recorte temporal, corte cronológico ou contexto social, econômico, cultural no qual o objeto arquitetônico foi projetado e construído.

Assim, deve ser realizada a análise dos fatores que originaram o projeto, a obra, o cliente, os custos, na época em estudo.

Esta dimensão histórica apoia-se em SERRA (2006), que em seu livro intitulado “Pesquisa em Arquitetura e urbanismo/ Guia prático para o trabalho de pesquisadores em pós-graduação” aponta para a existência do processo que envolve o objeto e o sistema/ condicionantes que envolvem este processo.

3_ DIMENSÃO ESPACIAL


Esta análise espacial da obra apoia-se em metodologia proposta por GASTON e ROVIRA (2007) que elaboraram um guia básico de investigação sobre o projeto de arquitetura, cujo objetivo é o de facilitar a análise crítica e arquitetônica dos objetos estudados, apresentando ferramentas para operar o material documental de maneira eficiente, assim como, ilustrar o modo mais adequado de elaborar e apresentar as conclusões.

GASTÓN e ROVIRA (2007), do grupo de pesquisa FORM/ UPC/ Universidade Politécnica da Catalunha, propõem o estudo gráfico projetual, realizando imagens fotográficas da obra, levantamento de material de projeto, como plantas, cortes, fachadas e construções tridimensionais, que permitem a melhor compreensão do objeto em estudo .

Aqui parte-se do princípio, que o espaço pode ser compreendido como a paisagem do ambiente natural e paisagem do ambiente construído, e, portanto, a análise da dimensão espacial ocorrerá em dois níveis:

1) A do ESPAÇO EXTERNO À OBRA_ observando-se as características do lugar e do entorno, o tipo de relevo, a hidrografia, a vegetação, a geologia, o clima, os acessos e materiais existentes nesta paisagem.

       “A relação com o lugar é fundamental para a arquitetura; nenhum projeto de qualidade pode ser indiferente ao seu entorno. Projetar é estabelecer relações entre partes de um todo; isso vale tanto para as relações internas a um projeto quanto para as que cada edifício estabelece com seu entorno, do qual é uma parte”. MAHFUZ (2004)

2) O segundo nível da análise da dimensão espacial tratará do ESPAÇO INTERNO DA EDIFICAÇÃO: observando-se pontos tais como:

      _ as soluções de implantação da obra no terreno;
      _ a solução do programa de necessidades em planta baixa,
      _ o zoneamento,
      _ a relação entre zonas,
      _ fluxogramas,
      _ as alturas dos espaços,
      _ as relações de transparência e permeabilidade, 
      _ a existência de pátios, jardins, varandas, etc.

Aqui é gerado um rico material gráfico, composto por redesenhos, imagens tridimensionais, entre outros.

4_DIMENSÃO TECTÔNICA

A compreensão do que vem a ser tectônica- frequentemente definida como “arte da construção” (FRAMPTON, 1995), é fundamental para o entendimento desta dimensão.

O termo “TECTÔNICA” é definido como o caráter essencial da arquitetura através do qual, parte de sua expressividade intrínseca é inseparável da maneira precisa da construção, não mais se apresentando como um manifesto contra o cenográfico e o representacional, como ocorreu no debate inicial de FRAMPTON (1985 e 1990) em seus primeiros textos sobre o tema,  onde criticava a produção pós moderna- mas como uma maneira de abordar a arquitetura enquanto concepção e construção, enquanto realização, conjuntamente.

Na ANÁLISE DA TECTÔNICA, propõe-se uma pauta de pontos a serem seguidos, baseados em GASTON e ROVIRA (2007) tais como, observações sobre:

a estrutura de suporte + as soluções construtivas de peles e paredes +  cobertura +  detalhes construtivos  + revestimentos e texturas.

Entendendo aqui  que um sistema construtivo é composto não apenas da estrutura da obra em si, com sua divisão básica em subestrutura (fundações), e superestrutura (pilares, vigas, e peles), mas também, de seus detalhes, junções que envolvem as relações entre a materialidade e as soluções projetuais, que formam o arcabouço construtivo de determinada edificação e lhe conferem um valor construtivo a ser preservado.

Os pontos de análise da dimensão tectônica a serem considerados são:

1.ESTRUTURA DE SUPORTE- Observar o sistema estrutural adotado; o uso de modulação, tramas ordenadoras; os materiais utilizados na superestrutura (pilares e vigas) de paredes: a) tipo de estrutura: paredes estruturais, concreto armado, perfis metálicos; b) analisar se a solução estrutural se manifesta de forma sistemática ou sintomática; c) e a relação estrutura / configuração do edifício.

2. PAREDES- Observar quais foram os materiais e soluções empregados nas peles (esquadrias, cobogós, pedras, etc), observando-se: a) tipo de parede: muros, painéis de vidro; b) relação fechamento/ estrutura; c) fechamento sistemático ou soluções particulares; d) sistema construtivo: economia de meios ou diversificação de soluções.

3. COBERTURA: Observar quais foram os materiais e soluções construtivas utilizados  da cobertura; As soluções são expressas ou implícitas?; b) Qual o  papel da cobertura na configuração edifício?; c) Quais foram os fechamentos visuais e que soluções foram empregadas na proteção climática?

4. DETALHES CONSTRUTIVOS existentes na obra: presentes em marquises, escadas, rampas, balcões, fachadas, coberturas, esquadrias, entre outros elementos.

5. REVESTIMENTOS E TEXTURAS PLASTICIDADE E CROMATISMO MATERIAL: a) textura e cor de materiais; b) textura e plasticidade de soluções. 

5_DIMENSÃO FORMAL

MONTANER (2002, p.10) escreveu que “as formas sempre compartilham valores éticos, remetem a marcos cultural, compartilham critérios sociais e se referem a significados”.

A dimensão formal a ser analisada, conceitua forma, apoiando-se aqui na definição de MONTANER (2002, p.8) que explica que esta deve ser entendida como estrutura essencial e interna, como construção do espaço e da matéria: “Dentro desta concepção, forma e conteúdo tendem a coincidir.”

O termo ’estrutura’ seria a ponte que interligaria os diversos significados da forma”. 

As obras devem ser analisadas, não apenas por sua aparência, mas também por seu conteúdo.

Vitruvio e sua teoria de 2000 anos atrás, e que até meados do século XVIII possuía uma forte aceitação_ dizia que a boa arquitetura seria aquela que apresentasse um equilíbrio entre os três componentes da tríade vitruviana:

“Firmitas (solidez) e Utilitas (adequação funcional), que fazem parte da esfera racional do conhecimento e Venustas (beleza, no entendimento de alguns), “que é o componente estético da tríade significando o que, em tempos pré-modernos, estava centrado nas relações proporcionais e na aplicação das ordens clássicas ao exterior dos edifícios”. MAHFUZ (2004) 

6_DIMENSÃO FUNCIONAL

A análise da dimensão funcional ou de utilização da obra observa o uso original, as transformações sofridas referentes ao uso ao longo dos anos, e o uso atual da edificação.

A funcionalidade do edifício deve ser analisada considerando-se as soluções do programa em planta, o zoneamento e por isso, é constante o diálogo com a análise da dimensão espacial interna, conforme foi visto anteriormente.

Segundo COLIN (2000, p.41) o edifício possui três categorias de funções:

FUNÇÃO SINTÁTICA, SEMÂNTICA e PRAGMÁTICA.

FUNÇÃO SINTÁTICA _ refere-se à relação do edifício com a cidade, o terreno, o lugar no qual está implantado, com seu contexto imediato.
Qual o papel da edificação na paisagem na qual ela está inserida?

FUNÇÃO SEMÂNTICA _ procura analisar o significado da obra para a sociedade, pois conforme coloca Colin, a edificação além de abrigar uma atividade, também representa e significa algo para as pessoas daquele lugar.

FUNÇÃO PRAGMÁTICA_  analisa as relações da obra com seus usos, atividades.

7_DIMENSÃO DA CONSERVAÇÃO 

Aqui devem ser observados aspectos, tanto no que é referente à proteção legal, estudada na dimensão normativa; quanto ao seu estado de conservação física, no que é referente às patologias existentes na mesma, acarretadas pelo seu uso e processo construtivo.

Tais aspectos devem ser observados no estudo do objeto arquitetônico de interesse patrimonial, acompanhados finalmente dos mapas de danos (TINOCO, 2009) que depois de diagnosticadas as patologias da obra analisada, indicarão a conduta que deve ser orientada para a preservação do bem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BERMAN, Martin. Conversaciones sobre la guerra y la paz. Barcelona: Luiz Carral.1954
CHOAY, F. A Alegoria do Patrimônio. 4ª. Ed. São Paulo: Estação Liberdade. UNESP. 2006
COLIN, Silvio. Introdução à arquitetura. Rio de Janeiro: Uape, 2000.
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